Nem sempre a acusação corresponde exatamente ao que aconteceu. O overcharging — excesso de acusação — aparece quando a denúncia é inflada: tipos penais mais graves, majorantes e qualificadoras sem base ou um empilhado de fatos que não se confirmam. Resultado: processo mais pesado, pena artificialmente maior e menos chances de acordo.

O que é overcharging no processo penal?

Overcharging significa denunciar além do que as provas sustentam. É quando o Ministério Público apresenta uma imputação maior e mais grave do que o caso comporta.

  • Via vertical: escolha de um tipo penal mais grave do que o fato permite.
  • Via horizontal: inclusão de vários fatos não comprovados para tornar a denúncia mais extensa.
  • Majorantes e qualificadoras: uso de causas de aumento e circunstâncias qualificadoras sem lastro probatório suficiente.

Esse excesso costuma surgir já no inquérito ou na fase inicial da ação penal e afeta diretamente os direitos do acusado.

Por que o overcharging acontece?

Não é “erro de cálculo”. Em geral, é estratégia:

  1. Pressão psicológica: quanto mais grave a acusação, maior o medo de uma condenação alta e maior a pressão por um acordo.
  2. Bloqueio de benefícios: com pena em abstrato inflada, benefícios como o ANPP ficam fora do alcance.
  3. Poder de barganha: acusações “sobram” para depois serem retiradas em troca de confissão ou acordo.

Consequências do overcharging

1) Aumento artificial da pena

Tipos mais graves e majorantes sem base elevam a pena-base projetada sem que haja prova suficiente.

2) Impedimento de acordos e benefícios

O acusado pode perder acesso a medidas como o ANPP e a minorantes legais porque a acusação inflada “estoura” limites legais.

3) Prejuízo à defesa

Responder a acusações além do razoável consome tempo, recursos e dificulta a estratégia defensiva.

4) Custo financeiro e emocional

Processos mais longos e pesados aumentam gastos e desgaste do acusado e da família.

5) Perda de credibilidade

Quando o excesso é retirado no caminho, fica a sensação de que a acusação foi usada como pressão, não como busca da verdade.

O papel da defesa

A defesa é quem reequilibra o jogo. Em termos práticos, cabe à defesa:

  • Reenquadrar o tipo penal: demonstrar que a conduta se amolda a infração menos grave quando for o caso.
  • Impugnar majorantes e qualificadoras: pedir a retirada do que não tem prova suficiente.
  • Atacar a falta de justa causa: requerer o afastamento de imputações sem lastro probatório mínimo.
  • Assegurar benefícios legais: pleitear ANPP e outras medidas mesmo diante de denúncia inflada.
  • Preservar a proporcionalidade: pena justa é pena proporcional ao que de fato aconteceu.

Em outras palavras: a defesa não protege apenas um indivíduo; protege o devido processo legal e evita que a acusação vire abuso de poder.

Como o sistema de Justiça deve combater o overcharging

  • Boa-fé processual do MP: acusar só com base em provas sólidas e proporcionais.
  • Controle judicial efetivo: filtrar e rejeitar acusações infladas ou sem justa causa.
  • Garantias fundamentais: contraditório, ampla defesa e proporcionalidade não são opcionais.
  • Coerência decisória: decisões que impedem que o excesso acusatório bloqueie benefícios legais.

Exemplos práticos (didáticos)

Exemplo 1: furto simples virando roubo

A prova indica subtração sem violência. A denúncia vem como roubo. A defesa atua para reenquadrar no furto simples e afastar qualificadoras indevidas.

Exemplo 2: um fato com várias versões “empilhadas”

No inquérito consta um único episódio. A denúncia aparece com vários fatos semelhantes, sem prova de cada um. A defesa pede o desmembramento e a retirada do que não tem lastro.

Exemplo 3: majorantes incluídas por padrão

A causa de aumento é citada sem elemento concreto que a comprove. A defesa requer sua exclusão para ajustar a pena em abstrato e viabilizar benefícios legais.

Perguntas frequentes

Overcharging é ilegal?

O sistema não chama “overcharging” na lei, mas excesso de acusação é incompatível com boa-fé processual e proporcionalidade. Quando detectado, deve ser corrigido pelo juiz mediante provocação da defesa.

Isso impede o ANPP automaticamente?

Não deveria. Inflar a denúncia para “estourar” a pena em abstrato e, assim, barrar acordo, contraria a lógica do instituto. A defesa pode demonstrar o exagero e pleitear o benefício.

O STJ reconhece a existência do overcharging mas exige que o prejuízo esteja muito bem fundamentado.

Como a pessoa acusada pode ajudar a própria defesa?

Reunindo documentos, testemunhas e informações que ajudem a delimitar o fato real; evitando exposição desnecessária; e confiando na estratégia técnica de questionar o excesso com base nas provas.

Overcharging não é detalhe. É um desequilíbrio que transforma o processo penal em um jogo de força. Quando a acusação exagera, a pena cresce no papel e as portas de acordos se fecham — não por justiça, mas por estratégia.

Combater o excesso acusatório é garantir um processo proporcional, equilibrado e humano, em que a pessoa responde pelo que realmente fez — nem mais, nem menos.