Quando falamos sobre criminalidade nas periferias, muita gente ainda recorre à velha explicação: “é falta de caráter”. Mas a criminologia oferece uma lente mais profunda para entender esse fenômeno. Uma delas vem de Robert Merton, um sociólogo americano que formulou a teoria da anomia. E sim, ela tem tudo a ver com a realidade da quebrada.
O que é anomia?
Anomia é um conceito que surgiu com Émile Durkheim, mas foi Merton quem deu a ela uma leitura mais voltada para o crime e o desvio social. Para ele, a anomia acontece quando existe um descompasso entre os objetivos valorizados pela sociedade (como riqueza, sucesso, consumo) e os meios legítimos disponíveis para alcançá-los.
Em outras palavras: a sociedade cobra que todos vençam, mas não garante que todos possam disputar a mesma corrida. A regra é a mesma, mas os pontos de partida são completamente diferentes.
E como isso leva ao crime?
Merton analisou como as pessoas reagem a esse desequilíbrio. Uma dessas reações é a “inovação”: quando o indivíduo aceita os objetivos sociais, mas rejeita os meios legalmente instituídos para alcançá-los. É aí que entram comportamentos como tráfico, golpes, furtos e outras formas de criminalidade econômica.
Isso não significa que quem está na periferia automaticamente vai se tornar criminoso. Pelo contrário: a maior parte das pessoas da quebrada resiste e sobrevive de maneira honesta, mesmo em condições adversas. Mas quando o acesso ao estudo, ao emprego digno e à mobilidade social é negado sistematicamente, as opções legais se estreitam. E o risco de transgressão aumenta.
Explica, mas não justifica
Falar de anomia não é justificar o crime. É recusar explicações rasas, que colocam toda a responsabilidade no indivíduo e ignoram o papel da desigualdade estrutural. Entender o contexto não é passar pano. É entender que, sem enfrentar a raiz do problema, vamos continuar enxugando gelo com as prisões.
A seletividade do sistema penal
O sistema penal costuma ser rápido para punir quem tenta “inovar” na margem, mas silencia quando a inovação parte do topo: fraudes financeiras, sonegação fiscal, corrupção. O desvio, nesse caso, é tratado com terno, não com tornozeleira.
A mesma sociedade que promove a cultura do consumo sem limite é a que aponta o dedo pra quem tenta sobreviver por fora da regra.
A mesma que diz “esforça que você consegue”, mas ignora o quanto é mais difícil tentar quando se nasce sem rede de apoio, sem acesso e com o estigma de onde mora.
E o que pode mudar esse cenário?
Não basta mais construir presídios ou aumentar penas. Se a gente quer realmente falar de segurança pública, tem que começar antes do crime acontecer. E isso passa por políticas públicas de verdade.
Educação de qualidade, acesso ao trabalho digno, moradia decente, cultura, lazer e saúde mental são os verdadeiros pilares da prevenção. Mas não só.
É preciso também investir em reparação histórica, em inclusão social real, e em uma justiça que escute antes de punir.
Quando o Estado se faz presente apenas com viatura, e nunca com escola, posto de saúde ou creche, ele não protege: ele vigia. E isso não é segurança. É abandono maquiado de repressão.
Política pública não é assistencialismo.
É estratégia de longo prazo.
É reconhecer que o combate à criminalidade precisa ser feito com justiça social e não com bala.
📚 Referências básicas para quem quer se aprofundar:
- MERTON, Robert K. Social Structure and Anomie. 1938.
- DURKHEIM, Émile. O Suicídio.
- BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro.
- WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria.